quinta-feira, 1 de junho de 2017

Diálogos de Antonio Candido com o jornalismo cultural contemporâneo VIA observatório impresa


O professor e sociólogo Antonio Candido morreu, dia 12 de maio, aos 98 anos, deixando uma contribuição fundamental para o jornalismo cultural, não só como crítico literário, mas também pelo seu pensamento reflexivo sobre o ato em si da crítica de arte. Sua lucidez sobre o ofício da crítica era claríssimo já muito jovem.

Por essa razão, a coluna deste mês se debruça sobre as reflexões que ele fez em seu primeiro texto publicado na Folha de S.Paulo, quando tinha apenas 24 anos, em 7 de janeiro de 1943, intitulado Ouverture. São 74 anos que separam nossa atual crítica cultural do pensamento publicado por ele, mas suas palavras continuam pulsando como fundamentais para esta especialização do jornalismo.

Candido começa dizendo que se espera muito do crítico, mas, principalmente, que ele defina o que é a crítica para ele. Nada mais certeiro. Não se pode entrar no ofício da crítica sem ter consciência de suas responsabilidades e riscos. Responsabilidade de emitir uma opinião justificada, bem argumentada, que não soe um achismo superficial. Risco de ser encarado, pelo artista, como uma agressão ao seu trabalho, e não a construção de um saber reflexivo, uma das grandes contribuições da crítica de arte.

“Não basta que o leitor se sinta diante de um homem de boa compreensão, é preciso que ele sinta o homem de boa-fé”, diz ele no texto, em palavras que nunca foram tão atuais, quando vemos críticas, hoje, tão contaminadas por “pré-conceitos” (divido propositadamente a palavra, para deixar seu significado claro) e de má-fé. Um exemplo entre muitos: o crítico de cinema que detona o novo filme de um diretor apenas por ele ser notoriamente de uma posição política contrária a dele ou do veículo. Ou seja, não é a obra que está sendo trabalhada, são as crenças pessoais do veículo ou do crítico, absolutamente irrelevantes no texto crítico.

Isso não quer dizer negar um viés pessoal, algo que Antonio Candido considera inevitável, já que “a crítica parte e se alimenta de condições personalíssimas, às quais será escusado querer fugir”. Não existe, para ele, “crítica científica”. A crítica teatral Bárbara Heliodora, por exemplo, costumava, em alguns de seus textos, analisar e refletir sobre cada área que compõe a peça analisada. Falava do texto, atuação do elenco, iluminação, direção, encenação, cenário, figurino, desenho de som etc.

Mas mesmo este método de Bárbara, ainda que formal, classificativo e organizado, não é considerado um método científico. A ciência dura passa longe da crítica. Leitor e crítico precisam estar cientes disso. “Querer, portanto, descobrir fórmulas aplicáveis ‘objetivamente’ que dispensem os fatores estritamente individuais da personalidade do crítico – querer criar uma técnica de crítica – é uma monstruosidade que só não é perigosa porque não é possível”, diz Candido.

Há um ponto em seu texto, porém, que me parece mais útil aos dias de hoje do que quando ele escreveu, soando quase como premonitório. Candido diz que o crítico, embora não possa negar o caráter individualista de seu texto, tampouco pode colocar-se como a “razão de ser”, o aspecto central do texto crítico. Nada mais atual. Jornais e revistas são inundados de críticos autocentrados, cujos egos são inflados por likes e seguidores de redes sociais, que deixam quase sempre a obra em segundo plano em seu texto. O maior sintoma disso é o uso da primeira pessoa, uma muleta quase sempre desnecessária e inoportuna. Isso é “escamotear a obra e exibir em seu lugar a personalidade do crítico”, nas palavras do sociólogo.

Antonio Candido deixa claro que toda obra está ligada ao seu tempo, dialogando assim, com colegas de peso (e amigos pessoais) como Paulo Emílio Sales Gomes. Assim, tirar o produto de arte ou entretenimento alvo da crítica e a crítica em si de seu contexto é um grave erro, tanto do leitor quanto de acadêmicos ou jornalistas.

Por isso – e aqui vem algo que Candido nunca disse, por ser de um tempo em que o jornalismo ainda era uma profissão com delineações pouco claras – a crítica deve estar dentro do escopo do jornalismo cultural, pois ela se debruça sobre o produto de seu mesmo contexto. Assim como o jornalismo escreve a história do hoje, a crítica de arte escreve a história da arte contemporânea.

Isso pode se ver numa interpretação livre do que Candido afirma em seguida, ao dizer que é muito mais fácil encontrar as relações culturais com o seu momento atual ao analisar obras do passado, “em virtude do panorama mais ou menos amplo que a distância no tempo permite descortinar”. Neste ponto, porém, acho que o século 21 deixou estes limites ainda mais claros: crítica de arte fala do estado da arte contemporânea – grandemente influenciada, no entanto, pela agenda cultural. Todo o resto é história da arte.

Ainda que escreva de modo analítico, intelectual e reflexivo, o crítico não pode, nas palavras de Antonio Candido, perder a “disponibilidade emocional”, pois tem como missão revelar as essências da obra analisada, assim como o artista que a fez, mostrando as angústias, fraquezas, ciências e crises humanas nela contida. A crítica das artes tem valor fundamental para ele, pois “é nelas que se aninham as vagas possibilidades do futuro e que são julgadas as tentativas do passado. Tácita ou explícita, consciente ou inconscientemente, nelas se encontram as mais variadas manifestações da inteligência e do coração dos homens”.

Com seu humor sofisticado e discreto, Antonio Candido diz que o crítico não tem nenhuma “faculdade extraordinária”, não sabendo “levantar as tampas dos crânios”, sendo dono apenas de cinco sentidos e um “pobre cérebro”. Relativiza, portanto, o senso de vitalidade do crítico no mundo, um lembrete, hoje, tão importante para críticos que se esquecem da pequeneza de seu fazer diário. “O crítico é, por excelência, o escritor que passa, o que mais rapidamente envelhece; e a sua missão estará cumprida se puder ter contribuído para orientar os contemporâneos”, diz.

Ele encerra seu texto citando o crítico musical francês Vuillermoz, que afirmava não querer conhecer os artistas cujas obras critica, ao que Candido concorda, pois o contato pessoal torna “difícil a isenção de ânimo que deve ser a qualidade básica da nossa ética profissional” para não se “derramar em simpatias pessoais e compadrismos literários”. Diz isso no pé do texto, pois anuncia, ali, tomar a mesma postura de Vuillermoz a partir de então: “se nem sempre é possível dizer tudo que se pensa, é sempre possível dizer apenas aquilo que se pensa. É o que farei.”

E foi o que Antonio Candido fez ao longo de muitos textos, fundamentais até hoje para entender a missão, a ética e todos os desdobramentos da atividade do crítico de arte. Em suas críticas, transparecia um homem com amor pela vida e pela arte. E quem o conheceu pessoalmente pode comprovar isso. Por essa razão, finalizo recomendando o texto Um Professor, escrito pela premiada poetisa Cássia Janeiro, no dia da morte de seu amigo (http://www.ube.org.br/um-professor/). Nele se fecha a conclusão deste texto aqui: um grande crítico é, antes de mais nada, um ser humano apaixonado.
Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro “Jornalismo Cultural no Século 21”