Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas.
Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a alma poética do universo.
A poesia da terra nunca morre. É possível dizermos que as eras transactos foram mais poéticas, mas podemos dizer..
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Há poesia em tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — fato evidente para mim enquanto aqui estou sentado:
há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.
O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou convencido — vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens.
Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato.
Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espetáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua.
Encontro um significado mais profundo do que os terrores humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo.
E que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atônito com as coisas.
Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e
nestas condições, mas de nada mais se recordando.
FONTE: ARQUIVO PESSOA
http://www.umfernandopessoa.com/Imagens retirada google